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Comovente, Ainda Estou Aqui discute a impunidade dos crimes da ditadura militar | Crítica
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3 meses atrásem
Longa-metragem reafirma o talento de Fernanda Torres e do diretor Walter Salles
Nadando sozinha nas então límpidas águas da praia do Leblon, no Rio de Janeiro, Eunice (Fernanda Torres) aproveita o dia ensolarado e os poucos minutos de relaxamento em meio à rotina de dona de casa e mãe de cinco crianças. Sua tranquilidade é interrompida pela passagem de um helicóptero militar — um prenúncio agourento de como será o restante daquele verão de 1971 para sua família.
A sequência transcorre logo nos primeiros minutos de Ainda Estou Aqui. E é encenada novamente, de modo quase idêntico, já no segundo ato do longa-metragem. Dessa vez, no entanto, é uma voz familiar que tira a mulher de seu mergulho introspectivo para encarar uma realidade terrível.
O diretor Walter Salles tem predileção por esses simbolismos. Basta ver como explora a geografia aberta e plana, as cores quentes e a musicalidade do sertão nordestino (em oposição à atmosfera claustrofóbica, cinza e barulhenta do Rio de Janeiro) para representar a transformação emocional da protagonista de Central do Brasil (1998). Ou como elabora analogias para destino, tempo e redenção a partir de, respectivamente, uma camisa ensanguentada, uma bolandeira e o mar, em Abril Despedaçado (2001).
No novo filme, além da já citada metáfora do mergulho, o cineasta estabelece a ilusória redoma de normalidade ao apresentar o prelúdio quase como se fosse uma comédia sentimental sobre uma família burguesa — inclusive, filmando em seu habitual estilo documental os pequenos recortes do dia a dia, como a adoção de um vira-lata, as paixões adolescentes, as festas, as danças, as manhãs na praia.
No entanto, em progressão cada vez mais acelerada, a tal redoma vai rachando, em episódios como a blitz violenta no túnel, o comboio ruidoso na avenida beira-mar, as notícias sobre sequestros de embaixadores e os misteriosos telefonemas e visitas. Até culminar na ruptura, com militares à paisana chegando armados e levando o chefe da família, Rubens (Selton Mello), para supostamente prestar depoimento — e nunca mais voltar.
Essa estrutura funciona porque consegue construir o senso de desgraça iminente mesmo para quem não está familiarizado com os personagens reais. Rubens é o engenheiro paulista Rubens Beyrodt Paiva, eleito deputado federal em 1962, mas que, após o golpe militar, em 1º de abril de 64, foi um dos 102 políticos de oposição que tiveram o mandato cassado e os direitos políticos suspensos, tendo se exilado na Europa e retornado ao Brasil somente no ano seguinte. Naquela fatídica tarde em que foi tirado de sua casa, os agentes o levaram às dependências do famigerado DOI-CODI, o órgão de repressão da ditadura, onde o interrogaram, torturaram e assassinaram, sumindo com seu corpo.
Eunice é Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, que passou as décadas seguintes lutando para que o que aconteceu com seu marido fosse revelado e reconhecido pelo Estado. Nesse ínterim, se formou advogada, tornando-se uma das maiores especialistas em direito indígena do país. E Marcelo (quando criança, interpretado por Guilherme Silveira), único filho homem do casal, é o escritor Marcelo Rubens Paiva, autor do livro homônimo, publicado em 2015, no qual Ainda Estou Aqui se inspira.
Grife-se a palavra “inspira” — o filme, afinal, toma muitas liberdades para com a obra original. O romance autobiográfico tem escopo bastante amplo, abrangendo as memórias da infância e juventude do autor, a história da família e o relacionamento com a mãe, principalmente após ela começar a apresentar sintomas de Alzheimer, doença com a qual conviveu até falecer, em 2018.
De forma acertada, a adaptação, assinada pelo próprio escritor, em parceria com Murilo Hauser e Heitor Lorega, prioriza a essência do livro — o tributo a Eunice e seus esforços para encontrar a verdade —, concentrando-se no período da ditadura e no impacto do desaparecimento de Rubens. Nesse sentido, o longa se apoia na performance sensível de Fernanda Torres, que constrói uma personagem palpável em todas as situações, cotidianas ou extremas, pelas quais passa.
Mesmo tendo sido premiado no Festival de Veneza, o roteiro não escapa de alguns tropeços. Especialmente quando desperdiça o arco dramático da filha mais velha, Vera (Valentina Herszage), que, morando em Londres, tem de acompanhar a tragédia familiar por notícias de segunda mão. Ou quando abandona sem cerimônia a interessante dinâmica conflituosa que surge entre Eunice e a filha Eliana (Luiza Kosovski), detida junto com ela e também interrogada no DOI-CODI.
Nada que chegue a diminuir a força da obra ou colocar em dúvida sua escolha como representante brasileiro na disputa pelo Oscar. Além da forma, Ainda Estou Aqui é um filme importante pelo conteúdo, ao colocar de volta na pauta a vergonhosa e imoral Lei da Anistia, que tem possibilitado que os militares criminosos permaneçam até hoje sem pagar por seus crimes.
Fora a questão da justiça, essa impunidade faz com que os filhotes (e netos) da ditadura se sintam à vontade para tramar novos golpes e propagar a versão absurda de que o regime que cerceou direitos, perseguiu, prendeu, torturou e assassinou seus cidadãos estava na verdade “protegendo a democracia”.
Em seu livro, falando sobre a mãe quando já enfrentava a doença neurodegenerativa, Marcelo Rubens Paiva diz que ela “foi advogada de ilustres e desconhecidos, foi consultora do governo federal, do Banco Mundial, da ONU. Para onde foi todo esse conhecimento? Está à deriva na sua memória, pra lá e pra cá no mar de ligações químicas, de onde não se enxerga o facho grande da costa, a grande fogueira, para retornar à terra, ao ponto de partida”.
Na sequência final do filme, todavia, a Eunice idosa (a sempre brilhante Fernanda Montenegro) tem um lampejo de lucidez, como se vencesse a maré da demência e subisse à tona para respirar, tal qual sua versão jovem faz de modo literal na cena de abertura. Que o país também possa emergir da bruma da ignorância, recuperar a memória referente àquele período nefasto e agir para enfim punir os responsáveis.
Ainda Estou Aqui chega aos cinemas brasileiros em 7 de novembro de 2024.